Meu Ciclo: um estudo de caso de UX

Como utilizamos o UX/UI Design para ajudar as mulheres a quebrar o ciclo de violência doméstica.

Marcela Gomes
13 min readMay 7, 2021

Projeto: Estudo de caso conduzido durante o programa UX Unicórnio
Duração: 12 semanas
Ferramentas: Figma, Marvel, Maze, Trello, Google Data Studio, Google Forms, Google Meet, Slack. Miro

O desafio

Em 2020, com o surgimento da COVID-19, houve um aumento dos casos de violência contra mulheres que, por causa da pandemia, passaram a viver isoladas com os seus agressores dentro de suas casas. Utilizando nossos conhecimentos de UX Design, nos propusemos a ajudar uma ONG fictícia a desenvolver um aplicativo que orientasse e facilitasse o acesso à informação sobre leis e procedimentos para realizar denúncias em casos de violência doméstica.

Como tornar mais acessíveis os canais de denúncia de violência doméstica para mulheres durante o período da pandemia?

O cenário atual

A violência contra a mulher sempre esteve presente na realidade da população brasileira. Tal problema agravou-se devido ao isolamento social, principalmente por conta da convivência constante entre vítima e agressor. Além disso, de acordo com um estudo feito pela ONU Mulheres, outros fatores como o afastamento de amigos e familiares, o desemprego, o aumento da dificuldade em realizar denúncias e, em muitos casos, o uso abusivo de bebidas alcoólicas podem ter sido alguns dos responsáveis por esse aumento.

Uma outra pesquisa, feita pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), durante o período de isolamento, mostrou que houve uma redução de 27,2% de registros de lesão dolosa e um aumento de 2.2% nos casos de feminicídio entre os meses de março e maio de 2020 em comparação ao mesmo período no ano de 2019.

A fim de facilitar a realização das denúncias, foi sancionada, em julho de 2020, a Lei 14.022/20, que possibilita que os registros sejam feitos de forma online via aplicativo e site, não apenas de modo presencial. No entanto, conforme análise feita pelo Instituto Igarapé, mesmo com essa nova possibilidade e a flexibilização do isolamento, os registros de denúncias continuam abaixo do previsto.

Fonte: Jornal Brasil de Fato, 2020

Objetivo do projeto

Analisando toda situação através do Desk Research e elencando os problemas que foram encontrados, percebemos que devido ao desconhecimento da legislação e das ferramentas disponíveis, o número de denúncias registradas atualmente não reflete a realidade dos fatos.

Por isso, com o intuito de amparar e informar mulheres vítimas de violência doméstica e, também, incentivá-las a denunciar seus agressores, chegamos ao objetivo do projeto:

Como poderíamos acolher e informar mulheres sobre a realização de denúncias relacionadas à violência doméstica e ajudá-las a sair do ciclo de violência no qual se encontram?

Usuárias

Para entender quem são as pessoas que utilizarão e serão beneficiadas pela solução proposta, criamos duas proto-personas, descrevendo seus perfis e contextos, que foram validadas após a realização das pesquisas quantitativas e qualitativas.

Desenvolvemos nossas personas baseadas, não somente nas pesquisas realizadas, mas também no Ciclo de Violência Doméstica criado pela psicóloga americana Lenore Walker.

Fases do Ciclo de Violência Doméstica de Lenore Walker

Persona 1: Mulheres que estão passando pela Fase 1 (“aumento de tensão”). Nesse momento as mulheres costumam negar o que está acontecendo com elas, escondem de amigos e familiares sua situação e costumam se culpar, achando que fizeram algo errado que justifique o comportamento agressivo do parceiro. Por conta da manipulação sofrida e da desinformação, não se sentem de fato vítimas de violência nessa fase do ciclo.

Persona 2: Mulheres que estão passando pela Fase 2 (“ataque violento”). Nessa fase do ciclo, a mulher tem a materialização da violência do parceiro e começa a entender que é uma vítima. Com isso, pode tomar algumas decisões, como: buscar ajuda, denunciar ou até pedir a separação.

Contexto das usuárias

Com base nas personas validadas pela nossa pesquisa, criamos um Mapa da Jornada das Usuárias que nos ajudou a entender melhor a realidade das personas, os seus sentimentos e o que elas fazem em determinadas situações. Entendendo e analisando todo esse processo, conseguimos definir as melhores oportunidades para cada etapa da jornada.

Jornada da Letícia (Fase 1)
Jornada da Teresa (Fase 2)

Pixar Storytelling

Para que as jornadas de nossas personas ficassem mais claras, utilizamos o Pixar Storytelling para escrever como seriam suas rotinas e sentimentos e entender, ainda mais, os problemas de nossas usuárias.

Primeira validação

Nesta primeira etapa de validação, optamos por utilizar a Matriz CSD para organizar as principais certezas, suposições e dúvidas que tínhamos. Em seguida, utilizamos a Matriz Impacto x Conhecimento para entender quais dos pontos levantados que possuíamos pouco conhecimento e que traziam grande impacto para a questão. Com isso, conseguimos priorizar os pontos mais importantes, aqueles que poderiam nos mostrar futuras oportunidades para a resolução do problema. A partir disso, geramos nossas hipóteses, que posteriormente foram validadas através das pesquisas qualitativas e quantitativas.

Matriz CSD

Pesquisa quantitativa

A fim de validar as proto-personas e responder as principais hipóteses geradas, elaboramos a Pesquisa Quantitativa Atitudinal. A pesquisa quantitativa foi realizada por formulário do Google Forms e divulgada por ONGs que auxiliam as mulheres em situações de violência e em grupos de mulheres nas redes sociais relacionados ao tema. A mesma ficou disponível por cinco dias, no mês de Fevereiro de 2021. Nesse período, foram obtidas 167 respostas, das quais foram utilizadas 100 respostas, que corresponderam aos perfis desejados.

Os principais dados obtidos podem ser vistos no infográfico abaixo:

Confira com mais detalhes o racional utilizado na pesquisa quantitativa e os resultados obtidos através do artigo a seguir:

Pesquisa qualitativa

Após compilar e analisar os dados da primeira pesquisa, vimos que era necessário conversar com algumas mulheres para entender melhor suas vivências e o conhecimento sobre o tema. Escolhemos quatro mulheres que se voluntariaram para nos ajudar na fase de entrevistas do projeto. Uma delas não reconhecia ter sofrido algum tipo de violência (Grupo 1), enquanto três disseram ter sofrido violência e não realizado a denúncia (Grupo 2).

Estruturamos a pesquisa de forma a entender melhor o conhecimento dessas mulheres sobre a legislação brasileira e os canais de denúncia, além dos motivos que as levaram a não realizar as denúncias. Também achamos importante saber se de fato existem redes de apoio para mulheres em situação de violência e quais os sentimentos atrelados a esse tema tão delicado.

Optamos por um roteiro curto e sem perguntas sobre idade, endereço, ou outros detalhes pessoais, já que para a maioria das mulheres esse assunto é sensível e muitas preferem manter o anonimato.

Os principais insights que tivemos depois de conversar com as entrevistadas foram:

  • Pouco conhecimento sobre a Lei Maria da Penha e os tipos de violência que são englobados na lei;
  • Dependência financeira e emocional e o medo figuram entre os principais motivos para que as vítimas de violência doméstica não denunciem seus agressores;
  • Desde conversas com amigas e familiares até apoio psicológico, ficou clara a importância dos grupos de apoio para auxiliar no acolhimento das vítimas e na superação dos traumas.

A partir das entrevistas, identificamos diversas oportunidades nas jornadas das usuárias, e entendemos que estávamos no caminho certo. Conseguimos perceber a importância de manter nosso público alvo informado e, além de tudo, amparado. Dessa forma, é possível encorajar as mulheres a tomar uma atitude e fazê-las perceber que não estão sozinhas.

Para ver mais detalhes sobre a execução da pesquisa qualitativa e seus resultados, é só visitar o artigo abaixo:

Benchmarking

Além de ouvir nossas usuárias e compreender suas principais dores, buscamos entender mais sobre os produtos que já existem e quais soluções eles entregam. Comparamos alguns aplicativos e suas principais funcionalidades, como mostra a tabela abaixo:

Resultados e Priorização

Depois de conseguirmos tantas respostas nas pesquisas, diversas ideias começaram a surgir. Por causa disso, foi preciso decidir quais alternativas de solução deveríamos priorizar, para que nosso projeto não fugisse de seu objetivo inicial.

Para nos ajudar nessa tarefa, utilizamos uma ferramenta bastante conhecida no universo do UX: a Matriz Impacto x Esforço. Ela nos ajudou a entender quais ideias eram mais importantes e quais nos trariam maiores resultados com menor esforço.

As ações listadas no primeiro quadrante são mais impactantes e exigem menos esforço, ou seja, são mais relevantes para nosso projeto e para a ONG parceira. Utilizando essa abordagem, conseguimos ajudar nossas usuárias de uma forma muito mais eficiente e completa, além de garantir visibilidade para a instituição e ajudá-la a captar mais voluntárias e recursos.

Rabiscoframes

Definida a proposta de solução, iniciamos o processo de ideação do visual e do fluxo do aplicativo utilizando o método de esboço em quatro etapas, que consiste em anotações, desenho livre, crazy 8’s e rabiscoframes.

Todas as integrantes do time fizeram esboços e, por fim, fomos refinando e unindo as ideias até chegar no rabiscoframe abaixo:

Primeiro teste de usabilidade

Para o teste, criamos um protótipo de baixa fidelidade utilizando a ferramenta Marvel. Você pode acessá-lo clicando aqui.

Convidamos oito pessoas usuárias para testar o protótipo. Dentre essas pessoas, havia dois homens para que pudéssemos testar se, de fato, o nome e logo camuflavam o aplicativo conforme o planejado.

Para não enviesar o teste, buscamos pessoas que não participaram das pesquisas quantitativa e qualitativa, tendo em vista que já possuíam conhecimento da função principal do aplicativo.

No primeiro teste de usabilidade percebemos, principalmente, que:

  • Todas as pessoas usuárias, inclusive os homens, entenderam inicialmente que o aplicativo era sobre ciclo menstrual e, ao acessar a página principal, perceberam que se tratava de um aplicativo para vítimas de violência doméstica. Deste modo, concluímos que a função de disfarce do nome e logotipo foi atendida.
  • Os cards separados por categorias facilitaram a navegação das usuárias, porém, temos que revisar a disposição das informações, deixando as informações mais importantes na parte superior (exemplo: canais de denúncia e detalhes sobre a ONG).
  • Devido ao conteúdo do aplicativo, a segurança para o acesso é extremamente importante.
  • Nenhuma pessoa teve dificuldade para navegar pelas telas, no entanto, deixar o menu inferior e o ícone de voltar na mesma tela pode gerar dúvida sobre qual dos dois elementos utilizar para retornar à tela principal.

Apesar dos comentários, todas as pessoas usuárias conseguiram executar as tarefas de forma correta, no tempo esperado e sem frustrações aparentes.

Wireframe e Fluxo da Usuária

Depois de realizar o primeiro teste de usabilidade e de analisar o feedback das pessoas usuárias, enxergamos algumas oportunidades que poderiam ser utilizadas no aplicativo. Assim, partimos para a construção do wireframe, realizando algumas alterações. Durante o processo, foi levado em consideração o fluxo que a usuária faria.

Style Guide

Após a criação do wireframe e dos fluxos, chegamos na parte de pensar no guia de estilos para o Meu Ciclo. Todos os componentes foram pensados para criar uma experiência positiva e leve para as usuárias, além de criar um layout escalável e consistente.

Todo o layout do aplicativo foi construído usando o conceito de Atomic Design e algumas Leis de UX e Princípios de Design de Interação.

Cores

Escolhemos como cor primária o lilás, pois é uma cor que está ligada à luta das mulheres contra a violência doméstica. Como cor secundária, escolhemos o salmão por ser uma cor com um fundo mais quente para transmitir uma sensação de conforto para a usuária; buscamos mesclar uma cor de tom frio com uma cor de tom quente. Para as cores Dark e Light utilizamos escalas de cinza mais claro e mais escuro que foram utilizadas na tipografia e backgrounds. As cores Helpers têm o papel de chamar a atenção da usuária para algo que está ocorrendo no aplicativo.

Tipografia

Para a tipografia do aplicativo, usamos duas webfonts que combinam bem entre si e que podem ser encontradas no Google Fonts. Para os títulos, foi escolhida a família Montserrat por possuir um visual mais minimalista e pela sua variedade de estilos; e para os parágrafos escolhemos a família Lora que, por ser uma fonte serifada, melhora a leiturabilidade e legibilidade dos textos.

Botões

A construção dos botões foi pensada para ser confortável para a anatomia dos dedos mais utilizados ao interagir com uma interface mobile: o polegar e o indicador. Além disso, foi utilizado o conceito de elevação do Material Design. Foram criados botões no estilo “almost flat” e alguns floating buttons.

Formulários

Os formulários foram construídos utilizando linhas finas para manter o padrão simples e minimalista do layout. As cores de Success e Error, juntamente com ícones que passam a mesma mensagem, foram adicionados pensando na acessibilidade.

Ilustrações

Para manter a experiência positiva que buscamos passar para as nossas usuárias, utilizamos as ilustrações da coleção Women Power, da Product Designer Sara Pelaez, que pode ser encontrada na biblioteca de ilustrações Blush.

Quer saber mais sobre as nossas escolhas de design? Clique no link abaixo para ler o nosso artigo sobre o Style Guide do Meu Ciclo:

UX Writing

Como estamos tratando de um assunto delicado, a escolha do tom de voz que seria usado no aplicativo Meu Ciclo foi de extrema importância. Para que correspondesse ao objetivo do nosso projeto, escolhemos um tom de voz acolhedor e objetivo para que as usuárias se sintam bem ao utilizar o aplicativo e, ao mesmo tempo, consigam informar-se de forma clara e simplificada.

Protótipo de Alta Fidelidade

Após analisar todos os feedbacks que recebemos e realizar as modificações necessárias, nós criamos nosso protótipo de alta fidelidade.

Você pode acessá-lo clicando aqui.

Como estamos tratando de um assunto delicado, a escolha do tom de voz que seria usado no aplicativo Meu Ciclo foi de extrema importância. Para que correspondesse ao objetivo do nosso projeto, escolhemos um tom de voz acolhedor e objetivo para que as usuárias se sintam bem ao utilizar o aplicativo e, ao mesmo tempo, consigam informar-se de forma clara e simplificada.

Segundo teste de usabilidade

Com o protótipo de alta fidelidade pronto, fizemos o segundo teste de usabilidade e, para essa etapa, utilizamos o site maze.co, que nos permite visualizar com mais detalhes algumas ações das usuárias.

O teste foi divulgado em grupos do Facebook e perfis no Instagram para vítimas de violência doméstica, e em grupos de UX para mulheres no Telegram. Ao todo, 36 usuárias iniciaram o teste, sendo que 18 concluíram todas as tarefas solicitadas.

Com este segundo teste pudemos perceber que, no geral, as usuárias conseguiram atingir os objetivos no tempo e pelo caminho esperado, já as que fugiram dessa estatística estavam explorando outras funções do aplicativo durante as tarefas.

Durante a realização do teste, mais de 70% das usuárias indicou, em uma escala de 1 a 10, entre 1 e 2 o nível de dificuldade para realizar as tarefas (sendo 1 “Sem nenhuma dificuldade” e 10 “Muita dificuldade”).

Para saber mais sobre como realizamos nossos testes de usabilidade, acesse o artigo a seguir:

KPIs e Métricas

Tão importante quanto desenvolver uma solução focada no usuário é mapear se esta traz os resultados esperados. Para ajudar na escolha das métricas, utilizamos o Framework HEART, que é um acrônimo em inglês, formado pelas palavras Happiness, Engagement, Adoption, Retention, e Task Success.

Considerações Finais

Quando escolhemos o tema do nosso case, sabíamos que se tratava de um assunto delicado, mas de extrema relevância. Nos sentimos motivadas a encontrar uma solução para o problema proposto principalmente por sermos todas mulheres e conseguirmos entender a dor das nossas usuárias. Foi uma experiência muito enriquecedora poder usar nossos conhecimentos em UX para ajudar essas vítimas que muitas vezes não são amparadas e não sabem a quem recorrer.

Em um curto período de tempo, conseguimos criar um case completo de UX, colocando em prática o que aprendemos, desenvolvendo uma solução totalmente focada nas nossas usuárias. De qualquer forma, o Meu Ciclo não para por aqui. Através dos feedbacks recebidos pudemos enxergar oportunidades de melhoria, que vão nos ajudar a aprimorar ainda mais nossa solução.

Deixamos aqui nosso agradecimento especial para todas as mulheres que participaram das pesquisas e dos testes, contribuindo com o desenvolvimento do Meu Ciclo. Agradecemos também à toda equipe do UX Unicórnio, por todo suporte e aprendizado ao longo desses meses. Ficamos muito felizes pelo curso ter possibilitado uma grande troca de experiências e nos feito conhecer pessoas incríveis.

Obrigada por ter lido até aqui! Nos ajude a aprimorar nosso trabalho interagindo com nosso post 😊

Beatriz Oliveira: UX Strategy, UX Research, UX Writing, UI Design
Fernanda Sanches: UX Strategy, UX Research, UX Writing, UI Design
Marcela Gomes: UX Strategy, UX Research, UX Writing, UI Design
Tainara Marques: UX Strategy, UX Research, UX Writing, UI Design

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Marcela Gomes

Uma UX Designer, formada em Letras, que une as ciências humanas e a tecnologia para desenvolver soluções que impactam a vida das pessoas